Canção dos 40 anos

Já ontem longe vai, quase não lembro
Do Tocantins às margens verde então.
Em crescente a lua e brando o vento:
A dor, o parto à vida, o choro, o chão.

Nova vida a vibrar em velho leito.
O ferro arranca a minha de outra vida.
Mais um a acalentar um doce peito.
Justamente ali começa a lida.

Não, não seria doce a vida,
Não fossem as ilusões daquela infância.
Não seria a vida tão querida,
Não fossem os sonhos vividos em criança.

Descalço, peito nu, pele queimada,
Ao sol que mesmo em chuva se fazia,
Brincava a vadiar, pulava n’água.
Era feliz e mais feliz porque sabia.

De criança em jovem, fez-se homem.
As ilusões e os sonhos se calaram.
As lembranças ao fundo d’alma somem,
Dos doces momentos que ficaram,

Nas curvas que o destino foi traçando:
Esquinas de amor, de paz e de agonia,
Rolando risos e lágrimas rolando,
Poucas de dor e muitas de alegria.

E agora da viagem na metade.
Que pretensão! Será que vivo oitenta?
E eu que nem sabia a minha idade,
Não mais que de repente fiz quarenta.

Se olho para trás já é longa a estrada.
Pra frente, a fé à vida faz-se ainda.
Se a vida é só passagem, é só viagem.
O feio à vista, a vida faça lindo.

As vezes já me tenho desgostado,
Houve momentos de raras desventuras.
E triste e infeliz por derrotado,
Curti o fel de parcas amarguras.

Mas foram só momentos, vãos instantes.
É curta e bela a vida que acalento.
Meu peito é como o peito dos amantes:
Só cabe amor, as mágoas dão-se ao vento.

Já fiz da vida uma aventura errante.
Já fiz do ódio o que se fez amante.
De amante à vida já me dei bastante.
Já vi que a vida é um sangrar constante.

Que estanca o sangue se a ilusão se finda.
Que a ilusão é bela quando é doce ainda,
Da juventude o peito cheio, como é linda
A paixão ali é poço que não finda...

Perdi amores e ganhei carinhos.
Da falta, a solidão senti sozinho.
Da casa fiz o lar e deste o ninho.
Amei e fui amado e os espinhos

Que no caule à rosa se avizinham,
Não cortam o perfume que exala.
E a flor serena e terna ao vento baila,
Até que a morte, um dia, a vida esvaia.

Que seja a vida então esta aventura.
Que eu nasça novamente em netos meus.
Que as lágrimas, os risos e as loucuras,
Sejam as lembranças e emoções de quem viveu.

Que o coração seja fecundo no que resta.
Que o resto seja o ponto da doçura.
Que o ponto seja a lua e uma seresta.
Que a lua seja cheia e o sol brilhante.

Que o sol seja um enorme diamante.
Que o diamante até nas jaças ache brilho.
Que o brilho seja a força de um gigante.
Que a força seja o amor de irmão e filho.

Que o filho seja o pai sempre mirante.
Que o pai seja o esposo delirante.
Que a esposa seja o par sempre constante.
Que o par seja pra sempre dois amantes!

E embora ao tempo agradecido esteja,
Aos anos que quarenta já se foram,
Que a vida exista até que o olhos vejam
Um novo amanhecer em primavera,

Onde a paz, o amor, os sonhos e quimeras,
Não mais sonhos ou quimeras sejam.
Que o homem tenha orgulho de ser homem,
Não deixe eu ir sem que estes olhos vejam

Um mundo sem ódios e fronteiras,
Sem fome, sem dor e sem maldade.
Onde como do rio as ribanceiras
Traçam o rumo desde tenra idade,

A paz e o amor à vida sejam beiras,
De seres cujo canto é a liberdade.
Que as casas sejam lares em roseiras.
Que os lares possam enfim não conter grades.

Mas se assim não for e eu parta antes.
Parto feliz. A vida me foi boa.
Não, não foi a vida uma aventura errante.
Foi como o rio descendo uma canoa

E o sol e a lua e o vento, ao viajante
Sem rumo, ao rumo certo fez-se à proa.
Ao mundo fez-se ao largo como andante.
Quando não anda o pensamento voa.

E quando eu sossegar desta passagem.
Cansar a vista e os olhos do que vi.
Que seja o final porto, esta paisagem:
O vale, as matas, o rio em que nasci.

Deus queira que eu termine esta viagem,
Na mesma terra onde chorei primeiro.
Que o leito que me viu surgir às margens,
Seja o mesmo do suspiro derradeiro...

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