Coração vagabundo

- Coração, tu não te cansas
De arfar entre enseadas?
Não te fartas de andanças?
Não pousas não faz paradas?

Que fazes do teu destino?
Queres viver no banzeiro,
Pulando em teus desatinos,
Saltando pelos canteiros?

Não tens medo dos perais
Das praias do Tocantins?
Queres a saga fugaz
Dos libertos curumins?

Que procuras coração?
Que perdeste por aí?
Por que cavas este chão?
Feito um pé de murici?

Por que vives nas tapagens
O acari a procurar?
Cuidado com o poraquê
Na moita ele pode estar...

Cuida que na tipitinga
Que fazes no igarapé,
Na coceira da aninga,
Nas tranças do mururé,

Pode estar como o sereno,
Pela raiz do açaí,
Da jararaca o veneno,
E o bote da sucuri.

Olha que nas invernadas
Que plantas por esta vida,
Vais deixando nas chapadas
Sementes de despedida

Que crescem nas capoeiras,
Que torram pelas queimadas,
Que caem pelas ribanceiras
E descem pelas beiradas.

E sossegam nos remansos
E se engancham nos pedrais
E nas pedras fazem rancho
Aos cardumes de piaus.

Coração, doce guerreiro,
Sossega à sombra da mata,
Te encosta no uxizeiro
Dorme e sonha com a cascata

Da Serra do Trocará,
Onde a água em espuma branca
Corre pelos matagais.
Onde mata a sede a anta

E a guariba faz seus ais.
Onde a onça esturra altiva
Na toca que o macho faz.
Onde a cutia se esquiva

Do gato maracajá.
Onde o tatu cava a terra
Na sombra do jatobá.
Lá onde a planície é serra,

Na Serra do Trocará.
Por que teimas em correr,
Coração agoniado?
Um dia não vais bater

Vais parar, pobre coitado.
Minhoca vai te comer,
Neste chão vais ser plantado.
Então para de correr

Feito cobra surradeira.
Toma termo coração,
Ou tu cais na ribanceira,
Ao tropeçar neste chão...

- Dou de ombros, pisco o olho.
Sou coração vagabundo.
Só planto, não sei se colho:
Meu negócio é correr mundo.

Quero viver nesta terra
Feito um maribondo louco,
Zanzando por estas serras,
Escapando por bem pouco

Do abraço da sucuri,
Do bote da jararaca.
Roendo a massa do uxi,
Jogando n’água a pataca,

Subindo em pé de açaí,
Rolando na ribanceira,
Caminhando por aí,
Encostando pelas beiras

E em segundos descansar...
E cair nas capoeiras,
Na coivara pular.
E na mata eu faço aceiro,

Pro fogo não me queimar.
Se queima eu passo andiroba,
Ou peço pra alguém passar,
Depois como maniçoba

E de quebra um tacacá.
Como goiaba bichada.
Só sei tocar maracá,
Mas sei cantar marujada

E carimbó sei dançar.
Aprendi fazer farinha,
Mas não gosto de pescar.
Já quero o peixe na linha

E na brasa o jaraqui,
Com pimenta e com limão.
Não sei fazer tipiti.
Só sei pegar camarão,

Quando está no matapi,
Mas sei por a malhadeira
E já vi mapinguari.
Já brinquei com tucandeira

E com boto tucuxi.
Já saltei as cachoeiras
Que muitos jamais verão.
Já saltei muitas porteiras

Que muitos não saltarão.
Já chorei prantos dispersos
Que muitos não chorarão.
Já sorri gozos diversos

Que muitos não sorrirão.
E o riso, assim como o pranto,
Espantam-me a solidão.
E na solidão eu canto

E os ecos desta canção,
Vão pousar pelas mangueiras,
Nos galhos das castanheiras,
Nas palmas das pupunheiras,

No ouro do tucumã.
E passam pelas vazantes,
Pelo peito dos amantes,
Pelos raios da manhã.

E se espetam na juquira
E varam na mata virgem,
Que o machado não sangrou,
E ali criam raízes

Como golpe que sarou.
Sei que ficam as cicatrizes,
Quando o sangue já estancou:
São lembranças de deslizes,

Não covas de quem tombou.
São sinais de quem venceu
Ou marcas de quem tentou.
E quem tenta a vida vence.

Vence a vida quem lutou.
Vou batendo pela vida.
Não me quero aquietar.
Quero viver nesta lida

Que a morte tarde a chegar.
Mas como ela não avisa
A hora de carregar.
Quero ter vivido a vida

Quando ela vir me buscar.
E viver é correr mundo
É ver o mundo girar.
Sou coração vagabundo:

Vou girar junto com o mundo
Vivo esta vida a bailar.
Sou coração vagabundo
Das serras do Trocará.

Trocará que ainda corre
Pro rio em busca do mar.
Trocará que à noite canta
Para os meus sonhos ninar.

Trocará da minha infância,
Quando eu parar de bater
Continua a tua herança,
As tuas águas a correr.

Pois nelas pelas beiradas
Eu vou ainda bater
Cantando doces toadas
Encantado vou viver.

Vou ser visagem cuíra.
Vou fazer assombração.
Vou juntar-me ao curupira.
Da noite na escuridão.

Sou coração vagabundo
Vivo da vida a troçar
Saí para correr mundo,
Da Serra do Trocará...

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